Os relógios possuem uma característica fascinante: são capazes de criar uma simbiose entre o prazer e a obsessão e têm a tendência de nos proporcionar alguns dos melhores momentos entre amigos. Nunca um objecto tão desnecessário se revelou tão importante.
A razão da existência de algumas revistas de relojoaria nos tempos que correm, é um mistério. Da mesma forma, o facto de existirem empresas e relojoeiros que se dedicam à construção de um objecto tecnologicamente obsoleto, tem de ser coisa de gente com pouco juízo.
E por favor, não se deixem levar por histórias de técnicas inovadoras onde sistemas neófitos de escapes à base de silício “Prêt-à-Assembler” nos hão-de levar a encontrar novas formas de alcançar o climax relojoeiro. Muito estranharia se a génese por detrás destas iniciativas não pertencesse ao domínio algo desregrado do marketing relojoeiro dos nossos dias e de uma tentativa inglória de riscar da equação uma certa mão de obra especializada que já não abunda na maioria das ditas manufacturas. Essas sim, já excessivamente habituadas à arte da assemblagem em vez da arte da relojoaria.
É que tanto na lingua portuguesa como na francesa, o termo “relojoeiro” não distingue, manifestamente, o trigo do joio. Já no inglês, um “watchmaker” é realmente um fazedor de relógios, e não é preciso ser-se um para cumprir de forma eficaz uma tarefa numa linha de montagem. A propósito deste tema, vem-me subitamente à memória a frase chocante que ouvi de um responsável de uma marca com bom nome, “os nossos melhores relojoeiros estão no serviço de pós venda (...) são os únicos que conhecem os nossos movimentos de A a Z”.
É que por mais tecnologia inovadora que associemos a um relógio mecânico, ele jamais deixará de ser um objecto ultrapassado. Aliás, até mesmo os primeiros movimentos com diapasão, que antecederam a era do quartzo na década de 1950, eram relativamente mais precisos do que a maioria das actuais elites da relojoaria mecânica, tenham ou não certificados de cronómetro associados.
Arriscando-me a ser apelidado de Velho do Restelo lá para os lados do Jura Suíço, mantenho-me plenamente convencido de que de nada serve extravasar as fronteiras da essência do relógio mecânico se com isso passarmos a desvirtuar a herança de séculos de ensinamentos que ainda hoje nos esforçamos por readquirir no seguimento do tsunami com que o quartzo varreu a Suíça e outros centros de produção europeus.
E, no entanto, continuamos a comprar relógios, a admirá-los nas melhores montras do país e a não conseguir evitar um esgar de espanto de cada vez que viramos uma etiqueta para compararmos o que está lá escrito com o “budget” que amealhámos ao longo de meses e mesmo anos. A prova de que o nobre intuito de alimentar o nosso ego relojoeiro mais secreto não é uma tarefa fácil de cumprir, está ali, descaradamente visível, e com vários zeros e um símbolo de euro no fim.
Mas é impossível negá-lo, os relógios nunca tiveram preços tão elevados. E um dos argumentos que se utilizam para justificar este facto tem a ver com as elevadas remunerações praticadas na Suíça, mas que afinal não se alteraram assim tanto nos últimos anos. O franco suíço, esse sim, subiu em relação ao euro quando lhe retiraram a paridade, arrastando consigo a esmagadora maioria das tabelas de preços. Por outro lado, nunca as manufacturas investiram tanto em novos edifícios, estiveram tão bem equipadas em termos de maquinaria de última geração, nem nunca as suas colecções foram tão depuradas como agora. A produção tornou-se mais inteligente e a gestão de recursos mais elaborada com o mesmo grupo de movimentos a equipar todos os modelos de cada uma das linhas de algumas manufacturas. A economia de escala resultante desta estratégia deu origem a uma margem industrial substancialmente maior que resultou numa capacidade de investimento superior, canalizada diretamente para mercados emergentes sedentos de luxo. Cabe pois aos velhos mercados a tarefa de pagar a factura do aumento da capacidade de produção destinada a fornecer as exigências dos congéneres emergentes.
E no entanto, continuamos a comprar relógios! Veja-se bem, não nos contentamos com um único exemplar no nosso acervo, o que seria uma atitude lógica considerando o propósito do objecto: simplesmente indicar-nos as horas! Um leigo associaria este fenómeno ao gesto de pedir um pastel de nata na Manteigaria, ali para os lados do Largo de Camões, enquanto se fixa insistentemente o olhar na vitrine onde o pastel seguinte, fumegante e apetitoso, se alinha para consumo imediato.
Mas esta analogia gourmet fica-se por aí mesmo. O produto da Manteigaria, por mais extraordinário que seja, apenas alimenta a gula e não acrescenta nada de novo ao primeiro nata que consumimos. Aliás, o terceiro começa já a perder o efeito surpresa quando lhe damos aquela trinca estaladiça de estreia. No entanto, e no caso da relojoaria, este factor é elevado literalmente à categoria de três estrelas Michelin, onde a degustação de vários pratos distintos, mas complementares, nos brinda com uma experiência cultural notável pela sua variedade, densidade e complexidade. A “degustação” de cada peça de alta relojoaria que adquirimos é comparável à célebre técnica da esferificação dos irmãos Adriá: por fora aparenta ser uma coisa, mas quando explorada por dentro, há toda uma explosão que afecta os sentido e nos transporta para outra dimensão.
Apenas um só relógio? Impossível! A experiência da relojoaria tem de ser múltipla e requer frequentemente nervos de aço assim que se define qual a próxima “vítima” que queremos ter no pulso. Cada passagem pelas vitrinas de uma relojoaria é uma tortura e os vouchers de desconto com que marcas emergentes nos aliciam pela internet, um tormento. Dir-se-ia que a única solução é seguir o exemplo de Ulisses na Odisseia, e fazermo-nos atar ao mastro pelos nossos companheiros de forma a resistir ao canto das sereias. E no entanto, continuamos a comprar relógios!
O Vintage veio dar uma ajudinha a muitos entusiastas nesta questão de um poder de compra enfraquecido em relação aos premiums exigidos por algumas marcas. Não só os Vintage nos permitem embarcar numa viagem gratificante rumo ao passado, como frequentemente somos surpreendidos pela qualidade intrínseca de produtos com mais de meio século de existência. Qualidade que, veja-se bem, representa muitas vezes uma autêntica bofetada de luva branca na banalidade com que algumas manufaturas nos brindam todos os anos por alturas das feiras do sector. E isto apesar de todo o poderio financeiro e tecnológico que insistem em apregoar.
De outra forma, como poderíamos justificar a pujança actual dos leiloeiros especializados? Em quase todos as sessões de primavera e inverno em Genebra, são batidos recordes nas mais diversas categorias. Valores que muitas vezes chocam os simples mortais, incapazes de compreender como é que alguém é capaz de despender somas com cinco, seis e mesmo sete dígitos por um determinado exemplar da coroa. Chovem nessa altura os mais variados impropérios ao inaudito cavalheiro que se aventurou por esses valores nunca antes navegados, mas que passado um ou dois anos irá inverter o seu papel, vendendo o referido modelo por um premium confortável, bem acima da remuneração que qualquer papel comercial ou fundo de investimento é capaz. A performance não lhe irá valer de nada. Continuará a ser apelidado de louco e a ser responsabilizado pelas cotações inflacionadas com que os “dealers” apregoam os seu stock, e isto apesar da qualidade rara e estado virtualmente imaculado ( ...e consequentemente difícil de ser comparado...) do exemplar leiloado. As leis universais da procura e da oferta de pouco valem quando a critica é motivada por um simples e inocente sentimento de “quem me dera ter sido eu...”.
E no entanto, continuamos a comprar relógios!
Artigo inédito de Junho de 2019
Carlos Torres
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