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Foto do escritorCarlos Torres

John Harrison e John Jefferies, Londres, ca 1748


Relógio regulador de caixa alta de John Harrison e John Jefferies, Londres ca 1748 @ Sotheby´s


Relógios com ligações diretas a John Harrison são extremamente raros, e os que se podem encontrar em coleções particulares ainda mais. O presente regulador de caixa longa que aqui se mostra é um desses exemplos. Mencionado pela primeira vez pelo Coronel Humphrey Quill na sua biografia de John Harrison, publicada em 1966, era até agora apenas conhecido por um pequeno círculo de conhecedores no mundo da relojoaria e permanecia em grande parte oculto da vista do público, tendo pertencido à mesma família ao longo de mais de duzentos anos.


Este regulador de caixa alta construído pelo famoso relojoeiro de Harrison, John Jefferys, incorpora uma versão do seu famoso pêndulo de grade e foi equipado com os famosos cilindros em madeira oleosa lignum vitae destinados a anular a fricção que ocorre nos elementos metálicos. Provavelmente único, este relógio representa uma ligação tangível com uma das maiores mentes relojoeiras de todos os tempos. A proveniência notável deste regulador está quase completa, mas ainda restam dúvidas sobre o primeiro proprietário e os pormenores de como o relógio foi encomendado. Talvez, ao fim de 275 anos, as últimas peças deste quebra-cabeças venham a ser resolvidas.



Uma gravura de John Harrison por P.L. Tassaert segundo uma pintura de Thomas King, publicada a 1 de Agosto de 1768 @ Sotheby´s Picture Librar


John Harrison (1693-1776) é talvez um dos nomes mais famosos do mundo da relojoaria. Nascido em Foulby, Yorkshire, filho de um carpinteiro, Harrison seguiu os passos do pai, mas no seu tempo livre teve a capacidade de aprender sozinho a arte da relojoaria. Aos 20 anos, constrói o seu primeiro relógio de caixa alta e, o que é mais fora do comum, o movimento era em madeira. Apenas três dos primeiros relógios de caixa alta em madeira de Harrison sobreviveram e estão hoje todos em coleções públicas.


Em 1714, apenas um ano depois de Harrison ter construído o seu primeiro relógio de caixa alta, o governo britânico anunciou que uma enorme recompensa de £ 20.000 (aproximadamente £ 5 milhões hoje) seria oferecida a quem solucionasse o problema da determinação da longitude no mar. A atração natural por esta recompensa estimulou o jovem Harrison a tentar melhorar a precisão dos seus próprios relógios e, na década de 1720, em parceria com o seu irmão James, constrói pelo menos três relógios de caixa alta mais precisos e com um design inovador. Em 1726, Harrison inventa o pêndulo de grade de ferro para compensar as variações no comprimento de um pêndulo devido à oscilação da temperatura. Como carpinteiro, o seu conhecimento das diversas madeiras permitiu-lhe selecionar o lignum vitae, uma madeira extremamente dura e naturalmente oleosa, com a finalidade de reduzir o atrito nos seus relógios. Acredita-se que os seus três relógios mais precisos estavam, à época, entre os relógios mais precisos alguma vez construídos. Mas esses relógios dependiam do seu pêndulo para assegurar a sua precisão, e um pêndulo não pode ser usado numa embarcação em permanente movimento em alto mar.


Tendo experimentado e desenvolvido os seus relógios convencionais, Harrison dedicou o resto de sua vida a resolver a questão da cronometria no mar com os seus famosos relógios marítimos H1, H2 e H3 e, eventualmente, o H4 e H5, os precursores do cronómetro marítimo convencional. Os quatro primeiros estão na coleção do National Maritime Museum, em Greenwich, e o quinto na coleção da Worshipful Company of Clockmakers no Science Museum, em Londres. Harrison acabou por nunca receber diretamente a recompensa de £ 20.000. Aliás, ninguém a recebeu. Harrison foi pago a prestações pelo seu trabalho e apenas recebeu o valor final do dinheiro da recompensa aos oitenta anos, após uma longa batalha com o “Board of Longitude”.


As inovações tecnológicas de John Harrison e a sua determinação de vingar contra todas as probabilidades prepararam o terreno para os seus sucessores desenvolverem ainda mais a cronometria marítima e resolverem permanentemente o problema da determinação da longitude no mar. Um legado notável que sobrevive até aos dias de hoje.



"O Relógio de Jefferies", por Jonathan Betts



Relógio regulador de caixa alta de John Harrison e John Jefferies, Londres ca 1748 @ Sotheby´s

Para os relojoeiros, o nome de John Jefferys estará invariavelmente associado ao grande pioneiro do cronómetro, John Harrison (1693-1776). Foi Jefferys quem foi contratado por Harrison para construir o agora célebre relógio de bolso, datado de 1753, que, com o seu excelente desempenho, inspirou Harrison a mudar de rumo no seu projeto de cronometragem e a concentrar-se no desenvolvimento de um movimento de menor dimensão para a determinação da longitude no mar. Infelizmente, Jefferys morreu no ano seguinte, mas se ele tivesse vivido, teria certamente sido contratado para ajudar na criação do H4, o cronómetro com o qual Harrison inovou ao nível do conceito de um cronómetro marítimo e que provou ser o primeiro de todos os relógios de precisão. O relógio de Jeffreys está atualmente em exposição no Clockmakers' Company Museum, emprestado pela The Corporation of Hull, Trinity House.


Foi o ex-aprendiz de Jefferys, Larcum Kendall (1719-1790), quem poderá ter assumido esse papel e foi Kendall quem foi contratado para fazer uma cópia do H4, como prova de que outros relojoeiros poderiam replicar o desenho de Harrison. Desta maneira, Jefferys ficou intimamente associado aos pioneiros deste magnifico período da história da relojoaria. A construção do relógio de Harrison por Jefferys teria certamente demorado dois ou três anos, especialmente porque se tratava de um design tão fora do comum, com o escape único de Harrison com compensação de temperatura, podendo-se supor razoavelmente que a encomenda do relógio foi feita por volta de 1750 ou 1751. No entanto, havia uma ligação anterior entre os dois fabricantes: a criação em 1748 do célebre e historicamente importante regulador conhecido simplesmente como o 'relógio Jefferies' - o tema deste lote da Sothebys.


John Jefferys


John Jefferys (c.1703-1754) era natural de Midgham, perto de Thatcham, uma pequena cidade a alguns quilómetros a leste de Newbury, em Berkshire. O seu pai respondia também pelo nome de John Jefferys e sabe-se da existência de pelo menos quatro irmãos, Benjamin, Samuel, William e Joseph. Jefferys era oriundo de uma dinastia de relojoeiros Quaker que remonta a Daniel Quare. Quare foi mestre de John Foster (1680-1687); Foster era nessa altura mestre de Edward Jagger (1694-1702) e Jagger era mestre de John Jefferys (04 de novembro de 1717 por 7 anos por £35). John foi um dos cinco aprendizes que Jagger contratou por diversas vezes, sendo outro o irmão de John, Joseph. Uma vez concluída a sua aprendizagem, John estabeleceu-se na paróquia de St Andrews Holborn (paróquia de Harrison) e casou-se com Rebecca, provavelmente nascida Yeates, já que John Yeates foi mencionado no testamento de Jefferys como sendo seu cunhado. Nenhum filho é indicado no testamento, registado a 18 de julho de 1754, tendo Rebecca como executora.


Dizia-se que Jefferys era principalmente um criador de movimentos de repetição. O seu trabalho teria assim sido amplamente incorporado nos relógios de outros fabricantes e não assinado. No entanto, e ocasionalmente, produzia ele próprio peças acabadas, existindo hoje um pequeno número de relógios de boa qualidade, assinados por Jefferys.


O Relógio de Jefferys


Relógio regulador de caixa alta de John Harrison e John Jefferies, Londres ca 1748 @ Sotheby´s


O regulador assinado com o seu nome está, no entanto, num nível de qualidade totalmente diferente. O relógio, que ao longo dos anos foi sujeito a uma série de mudanças históricas, tem três citações separadas gravadas em latim sobre o mostrador que nos contam em parte a história da peça. Informações e descrições históricas do relógio têm origem numa série de cartas mantidas pela família Lloyd Baker [cópias datilografadas desta correspondência feitas para o falecido Robert Foulkes (1916-1986) são fornecidas com este lote], os últimos proprietários do relógio, e o próprio relógio, com um estudo cuidadoso, revelam muito do seu passado.


Retrato do Dr. Mensager Mongey (1694-1788) por Mary e Thomas Black, 1764 @ Royal College of Physicians


Permanece incerto quem encomendou originalmente o relógio a Jefferys em 1748, mas sabe-se que pelo menos já em 1768 ele era propriedade do excêntrico Dr. Monsey. Na tradução das inscrições em latim sobre o mostrador, a primeira afirma que o relógio foi feito em 1748 por John Jefferys (escrito Jefferies porque não há Y em latim) "um homem talentoso e trabalhador”. O segundo registra que foi feito "sob os auspícios" de John Harrison, "o artesão mais distinto da Grã-Bretanha e sua glória e vergonha". Evidentemente um simpatizante das lutas de Harrison com o Conselho de Longitude, Monsey registrou aqui a sua opinião para a posteridade.


Detalhe do Mostrador @ Sotheby´s


A declaração "... sob os auspícios de John Harrison" está aberta a várias interpretações, mas o significado mais provável parece ser que Harrison atuou como consultor no projecto e na sua construção. Talvez o proprietário original tivesse a expectativa de ter um relógio do próprio Harrison, mas teria sido informado de que ele estava demasiado ocupado, mantendo-se no entanto como “consultor” da criação. Esta é a primeira ligação que se conhece entre Jefferys e Harrison, e se Harrison já conhecia Jefferys e o sugeriu, ou se Jefferys foi apresentado a Harrison naquela época não é atualmente conhecido. A terceira citação, abaixo do centro do mostrador, parece ter sido gravada sobre o local da assinatura original, presumivelmente “John Jefferys / London”. A citação registra que o relógio foi “restaurado” por Joseph Barber em 1768 e tem “Londres” abaixo, gravado com uma mão muito mais confiante, sendo provavelmente da assinatura anterior. A correspondência diz-nos que Barber ficou incomodado com este acréscimo, dizendo que não achava que o seu trabalho no relógio merecesse qualquer citação.


Joseph Barber é provavelmente o relojoeiro que foi aprendiz de William Webster a partir de 15 de setembro de 1721 (entregue a Edward Archer), embora, a trabalhar em St Anne's Soho, não parece que tenha sido membro da Clockmakers 'Company. Nos anos posteriores, um certo Joseph Barber de St. Anne's, provavelmente o mesmo homem, contratou um aprendiz, John Kingsmell em 1755 por sete anos e por £ 10.


Mudanças Históricas


A evidência no relógio sugere que, quando feito pela primeira vez, este assumiu a forma de um regulador no estilo introduzido por George Graham nas duas décadas anteriores. O relógio tem um pêndulo de ferro fundido com compensação de temperatura idêntico aos feitos por Graham e o seu chefe de atelier John Shelton, apresentando um mostrador do tipo regulador. Provavelmente, esta foi originalmente uma única folha de latão prateada e foi projetada para indicar a temperatura sobre o arco, com um bimetal de latão e aço suspenso atrás do mostrador à direita do movimento. Este design é notavelmente semelhante ao de um relógio agora na colecção da Goldsmiths' Company em Londres, com indicação de equação de tempo, assinado por John Berridge de Boston (embora tenha quase certamente sido feito para Berridge por George Graham em Londres), com um termómetro bimetálico indicando sobre um arco exactamente da mesma forma. Este relógio, que é descrito numa carta à Royal Society em janeiro de 1748, também é assinado por Samuel Frotheringham, de Holbeach, que, segundo a carta da Royal Society, foi o inventor do seu termómetro bimetálico. Como os dois relógios estão ligados, se é que estão, e se Frotheringham pode realmente ser creditado com a invenção desse tipo de termómetro, requer pesquisas adicionais.


Um estudo cuidadoso do movimento do relógio indica que o mostrador foi submetido a uma "melhoria" estética, provavelmente a obra de "restauro" de Joseph Barber em 1768. O centro do mostrador principal e o semicírculo que forma a escala de temperatura no arco, parecem ter sido cortados e ajustados a um mostrador de arco quebrado em latão polido (provavelmente reaproveitado de um relógio de caixa alta preexistente), dando ao relógio uma aparência decorativa mais convencional. Este mostrador 'atualizado' foi, no entanto, anexado ao movimento do regulador na sua forma original.


O Movimento Original

Detalhe do movimento @ Sotheby´s


O substancial movimento do regulador com autonomia de um mês, que a partir da correspondência de Lloyd Baker parece ter permanecido inalterado até a década de 1830, foi de construção única e mostra evidências da contribuição de Harrison. Todas as rodagens foram executadas com rolos antifricção, todos com centros em lignum vitae, e o movimento parece ter sido originalmente movido por tambores gémeos e grandes rodas (daí os dois orifícios sinuosos no mostrador) as duas rodas girando num carrete único da roda seguinte, montado entre eles. Isso alivia quase completamente os pivôs daquela segunda roda de carga, excepto pela reação daquele carrete seguinte (central), um recurso que se assemelha ao fuso de duplo arranque presente no cronómetro H1 de Harrison. Tendo duplo tambor de corda, o regulador não necessita de energia de manutenção, uma vez que, enquanto um tambor está a receber corda, o outro ainda está em movimento.


Detalhes do movimento @ Sotheby´s


A correspondência de Lloyd Baker registra que no início do século 19 o relógio foi inspecionado pelo filho de Harrison, William, que se recorda de o ter visto em anos anteriores tendo confirmado que os rolos antifricção tinham saliências em lignum vitae. A correspondência descreve também o escape original montado no relógio: “Existem 4 alavancas, duas para cada dente da roda de escape, que (…) pêndulo seja igual em todas as estações”. Embora esta descrição não seja inequívoca, ela descreve quase certamente o que é conhecido como "escape de bloqueio independente” (‘independent-locking dead-beat escapement’). Este escape fino é efectivamente um escape típico de segundos mortos (dead beat), mas possui um segundo par de palhetas que bloqueiam a roda de escape de forma independente, evitando o atrito variável do bloqueio das palhetas convencionais dos escapes típicos dos segundos mortos. Publicado pela primeira vez pelo relojoeiro Alexander Cumming (c.1732-1814) em “The Elements of Clock and Watchwork of 1766”, o próprio sugere ter sido uma invenção da sua autoria, mas nos anos posteriores foi descrito pelo filósofo natural e matemático John Robison (1739-1805) que afirma que o seu inventor era desconhecido. Assim, para além de um pouco de óleo nas superfícies de impulso do escape, o relógio não necessitava de qualquer lubrificação.


A história conhecida


Embora o proprietário original do relógio seja atualmente desconhecido, é improvável que tenha sido o Dr. Monsey. Aparentemente, foi ele quem contratou Barber para "actualizar" a aparência do relógio, o que é improvável se ele o tivesse encomendado com o seu mostrador regulador mais simples. Também é muito improvável que tenha sido feito para o próprio Harrison ou para qualquer membro da sua família. O design do escape, embora aparente ser uma grande melhoria em relação ao escape convencional e provavelmente mais fácil de executar por um não especialista do que um escape de gafanhoto, ainda é um que Harrison não teria considerado como ideal. No entanto, podemos ter certeza de que o relógio pertencia a Monsey em 1768.


MENSAGEIRO MONSEY

Além de médico, o Dr. Monsey era o epítome de um "cavalheiro filosófico" da época, com gosto por coisas mecânicas. Numa breve biografia publicada um ano após a sua morte, o autor afirma:


“Um determinado apartamento do Dr. Monsey era dedicado à mecânica, que expunha uma colecção confusa de pêndulos e rodas, pregos e serras, martelos e cinzéis… Sempre foi o seu orgulho ter um excelente relógio e um bom relógio; ele possuía um relógio de grande valor e requintado acabamento, parcialmente montado pelo Sr. Barber.”

Após a morte de Monsey em 1788, parece que o relógio foi adquirido por Joseph Barber para uso como regulador na sua loja em Dean St, no Soho. Mais tarde, na vida de Barber, William Lloyd Baker e o seu amigo Richard Earle Welby costumavam visitar Barber na sua loja. No início do século 19, quando Barber era um homem já com idade avançada, Welby convenceu-o a desfazer-se do relógio tendo posteriormente sido restaurado por William Johnson de Grimalde e Johnson "in the Strand". Em 1820, Welby passa o relógio ao seu amigo William Lloyd Baker, tendo o relógio permanecido na família deste último desde então.


Numa nota na correspondência de um membro posterior da família Lloyd Baker registra-se que em 1839 o relógio não era fiável tendo sido enviado ao relojoeiro “Mr Jeffreson” em Bruton St (provavelmente Samuel Jefferson (Loomes, 2006) em Bruton St, 1809-1851, como 'Relojoeiro do Príncipe de Gales'). Infelizmente, afirma também que “após repetidas tentativas” não conseguiu resolver o problema tendo aconselhado que todo os elementos antifricção fossem removidos, o que foi feito na época. Parece altamente provável que a transmissão de duplo tambor e o escape também tenham sido substituídos naquela época, assim como o atual parafuso e obturador de força constante e o escape de "batida morta" com rubis. As notas indicam que após este trabalho “o relógio tem funcionado bastante bem desde então”. A caixa folheada a nogueira de elevada qualidade escapou a mudanças significativas durante este período e, em geral, o relógio sobreviveu ao longo das décadas em boas condições.

Conclusão


Embora seja lamentável que mudanças técnicas posteriores tenham ocorrido, o relógio continua a ser um artefacto altamente importante na história de Harrison e de Jefferys, com muitas evidências interessantes remanescentes da sua origem. Este é um dos poucos objetos ‘harrisonianos’ ainda fora das colecções de museus públicos.



O IPR gostaria de agradecer à Sotheby's a disponibilidade para a publicação deste texto. Da mesma forma a Sotheby's agradece a Jonathan Betts, MBE, curador emérito do Royal Observatory, (National Maritime Museum), Greenwich, pela sua ajuda na pesquisa e catalogação deste relógio.


Este lote estava avaliado entre 300.000 e 500.000 libras, mas foi entretanto retirado do leilão.


Para mais informações sobre a Sotheby's e este lote, visite a página do leiloeiro aqui.

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Miguel Gonçalves
Miguel Gonçalves
Jul 22, 2023
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Excelente artigo, parabéns 👏

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