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Foto do escritorFernando Pernas

Quem dirige o Maestro?

Atualizado: 25 de jul. de 2022


Esta é uma história absolutamente verdadeira, com excepção das partes que são falsas.

A obra musical que se segue é já a terceira obra do programa. Ainda que o Maestro quisesse compensar um pouco o atraso do início do concerto, interpretando-a num andamento mais rápido, não poderia fazê-lo nesta peça, pensaram alguns dos presentes no público. Pois também o próprio Maestro é "dirigido", mesmo quando faz a mais rigorosa das suas interpretações. Esta obra tem uma duração exacta de 4'33", 273" se quisermos ser mais precisos. Para surpresa de alguns, e apesar do Maestro esboçar os seus típicos gestos, o ensemble¹ não reage. Não se ouve nenhum som, ou melhor, não se ouve nenhum som a partir de um instrumento musical. Um assento range e mais ao longe sente-se que há alguém comprometido por não ter conseguido segurar um pequeno "atchim". No palco, o Maestro sabe que esta obra de John Cage é uma proposta muito original. Na realidade, tem o objectivo de fazer o público ouvir todos os sons que habitualmente acontecem durante um concerto, mas dos quais ninguém se apercebe por estarem precisamente concentrados na música. O ensemble não irá dar rigorosamente nota nenhuma na execução desta obra. Escusado será dizer também que é uma obra sempre diferente cada vez que é apresentada, pois os sons do público nunca são os mesmos.


Na estante do Maestro era visível, de alguns ângulos da plateia, algo mais para além da sua habitual partitura que estranhamente se apresentava também ela praticamente em branco, sem pautas musicais e contendo somente a indicação tacet² . Mas o que se conseguia ver desses ângulos seria... um relógio? Os mais conhecedores aperceberam-se que o Maestro o havia consultado antes do seu primeiro, contido, gesto. Sem compreenderem porquê, sentiram também um desconforto no Maestro. Eles sabem que o Maestro tem de consultar religiosamente o seu relógio para garantir a melhor interpretação desta obra de John Cage, compositor contemporâneo. É o seu relógio que lhe garante a marcação rigorosa da duração desta obra. O seu relógio marca os segundos exactos, um após o outro numa exactidão e rigor fantásticos, sempre com a mesma tranquilidade. Para o Maestro, que é também amante de relojoaria, chega a ser relaxante e tranquilizador apreciar o seu funcionamento. Especialmente no final de dias de maior stress. Mais ainda se fosse um Jaeger-LeCoultre Atmos³ com as suas apenas duas oscilações por minuto, como aquele que o Maestro havia visto na oficina do seu amigo, Mestre relojoeiro que faz a rigorosa manutenção aos seus, não muitos, mas, adorados relógios.

Jaeger-LeCoultre Atmos - REF. Q5135204

Para esta obra musical o Jaeger-LeCoultre Atmos, que quase o hipnotizou, não iria resultar, não só pela sua dimensão em cima da sua estante, mas principalmente porque só faz dois tranquilizantes batimentos por minuto e são requeridos 60 batimentos por minuto (bpm) para a interpretação desta peça cujo nome é precisamente uma indicação de tempo: quatro minutos e trinta e três segundos, 4'33".


O MESTRE E O MAESTRO

Metrónomo de bolso Palmer Cadenzia 1970’s


Enquanto vai dirigindo o ensemble, ou se se preferir, gesticulando, vêem-lhe à memória as conversas com o seu amigo e Mestre relojoeiro - que graças a si tem vindo gradualmente a tornar-se melómano⁴, e que lhe disse, numa dessas conversas que ao menos nesta obra musical também o Maestro tem de se manter fiel aos 60 bpm tal como o relojoeiro quando "afina" com todo o rigor o seu relógio. Ou seja, nesta obra o Maestro é, também ele, dirigido. Numa espécie de graça, o seu amigo já lhe havia dito que enquanto um relojoeiro se esforça por manter exactos os segundos um após o outro, numa cadência de sessenta por minuto, os músicos fraccionam-nos ou multiplicam-nos. Nada mau para um recente melómano, pensou o Maestro, pois no repertório musical, em geral não abundam muitos temas musicais com 60 bpm. Uma marcha, por exemplo, tem, em regra geral, 120 bpm havendo também andamentos mais lentos que os 60 bpm e por aí fora. Mas sem dúvida que tem de haver uma base, pensava ele, e essa é precisamente os 60 bpm. Quem nos fornece essa base são os relógios, rigorosamente mantidos pelo seu amigo.



O METRÓNOMO E O RELÓGIO DE PAREDE


De facto, o Maestro nunca havia pensado muito nesta questão, pois os vários andamentos, de tantas gravações e interpretações que já ouvira, tornaram-se quase inatos, dispensando praticamente a consulta do metrónomo. Após algum racioncínio sobre o tema e algumas conversas com o seu amigo, concluiu que o metrónomo tem realmente muitas semelhanças com o funcionamento de um relógio de parede. As semelhanças resultam do facto de ambos terem uma haste e uma lentilha, para além de partilharem uma fonte de energia semelhante, a corda, e um sistema de rodagens também semelhante. Mais uma vez o seu amigo relojoeiro tem razão, enquanto a lentilha no relógio de parede tem o objectivo de o manter com uma frequência exacta, no metrónomo, o objectivo é fazer ouvir justamente as diferentes frequências, ajustando a lentilha na escala graduada da sua haste, podendo-se desta forma fazer ouvir 60 bpm; 120 bpm, 180 bpm, 240 bpm, etc.


MÚSICOS VS RELOJOEIROS


Serão os músicos uns vilões desestabilizadores da regularidade tão procurada pelos relojoeiros? Ao pensar isto esboçou um sorriso e deixou sair uma pequena gargalhada. Upss, não era o momento, acabou de deixar o seu contributo sonoro involuntário para a peça de John Cage. No silêncio quase absoluto da peça, ouvir o Maestro deixar sair uma pequena gargalhada era um pouco comprometedor, talvez tenha deixado os seus pensamentos voar um pouco alto de mais e lá aconteceu. Depressa se esqueceu do sucedido e voltou aos metrónomos, recordando que os relojoeiros também já apresentaram propostas para metrónomos de bolso, tal como o Patek Philippe & Co., Genéve, Case no. 2 de 1880, que viu na oficina do seu amigo relojoeiro e que pediu emprestado para mostrar aos seus amigos músicos, pois este metrónomo de bolso faz 120 bpm. Mais recente é o metrónomo Cadenzia que também foi pensado especificamente para músicos e que divide o minuto num número ainda maior de batimentos. Portanto os músicos não podem ser os tais vilões que fraccionam o tempo uma vez que os próprios relojoeiros forneceram e continuam a fornecer metrónomos de bolso aos músicos. Na verdade, o que existe é uma colaboração entre ambos.

PATEK PHILIPPE & CO, GENÈVE, CASE NO. 2, CIRCA 1880

Como deveria ser fantástico ter este metrónomo Patek Philippe e logo com elementos alusivos à música, pois traz a pauta de uma melodia no seu mostrador. Essa melodia constitui um mistério. Ainda ninguém conseguiu descobrir de que melodia se trata. Já a haviam cantarolado até e gravado. É uma melodia bonita, se bem que, metricamente e à falta de explicação para tal, deve considerar-se que tem uns pequenos "descuidos" nos quais só os músicos reparam. Por outro lado, talvez estes descuidos possam acrescentar ainda mais valor ao relógio. Que grande amigo, pensou ele, ao lhe confiar um Patek Philippe só para tentar descobrir a origem dessa melodia e, ao mesmo tempo, provar a outros músicos que os Mestres relojoeiros também se lembram do universo musical construindo desejáveis metrónomos de bolso.



GRAND FINALE


Bulova Accutron Spaceview e Relógio de carrilhão


Talvez até haja mais entre a relojoaria e a música que aquilo que se possa inicialmente imaginar. Os relógios de parede, de carrilhão, por exemplo, deliciam-nos normalmente com duas melodias o Westeminster e a Avé Maria. À sua memória vêm-lhe também os famosos Bulova Accutron e o seu diapasão de 300 hz ou de 360 hz. Ora o diapasão é precisamente um acessório usado em música para ajudar na afinação e os 300 hz em música têm um nome, chamam-se Ré, enquanto que aos 360 hz se chama Fá sustenido⁵. Deviam ser essas as notas musicais que os proprietários dos Bulova ouviam quando, à noite, os deixavam directamente em cima da sua mesinha de cabeceira e se esqueciam de colocar um pano por baixo para não lhes perturbar o sono. Este pensamento leva o Maestro a esboçar novo sorriso, agora já mais disfarçado e contido. Quando os seus pensamentos queriam continuar a fluir à procura de novos exemplos de partilha entre os universos da relojoaria e da música, deu-se conta que tinham passado exactamente os 4’33”. A peça tinha acabado? Tudo fora tão rápido. Terá o público abdicado de 273” para nada? De certeza que não. Tal como o Maestro, também no pensamento do público se passou muita coisa. Aliás, não deverá ser também o propósito desta peça, fazer-nos reflectir um pouco num contexto diferente? Ao virar-se para agradecer os aplausos, o Maestro conseguiu ver no público o seu amigo relojoeiro e também se apercebeu que este tinha visto o Patek Philippe que lhe havia emprestado e que estava em cima da sua estante. Uma vez que o Patek Philippe marca 120 bpm, terá o Maestro contado 546 batimentos para cumprir o tempo de duração desta peça? Pensou o seu amigo relojoeiro.


Continua…




Notas

1- Ensemble - Grupo musical constituído por um número de elementos não definido. Normalmente mais de 10 elementos, mas menor que uma Banda ou Orquestra.

2 – tacet – Termo que indica que o músico dever permanecer em silêncio sem tocar.

3 – atmos - jaeger lecoultre

4 – Melómano – Quem gosta de música

5 – Sustenido (#) – Aplicado a uma nota musical faz subir a sua afinação para um som ligeiramente mais agudo.

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