Second Vive de Dann Phimphrachanh: um relojoeiro português independente e a construção manual do seu relógio
- Nuno Margalha
- 5 de abr.
- 10 min de leitura
Phimphrachanh (pronuncia-se fimfracham) é o apelido de Dann, um relojoeiro português que herdou este nome de origem laociana através do seu avô, natural do Laos. O Instituto Português de Relojoaria (IPR) esteve em Genebra, na exposição Masters of Horology, onde teve a oportunidade de conversar com Dann e conhecer de perto o seu primeiro relógio — uma criação que marca a estreia promissora deste jovem talento no universo da relojoaria independente.
A entrevista foi feita na própria exposição (com algum ruído de fundo).
Dann Phimphrachanh iniciou o seu percurso de relojoeiro no curso de Técnico de Relojoaria no Centro de Educação e Desenvolvimento Pina Manique, da Casa Pia de Lisboa. Após os estudos na Casa Pia, partiu para a Suíça, onde aprofundou os seus conhecimentos na WOSTEP, frequentando o curso Tour 70 em 2011. No ano seguinte, iniciou uma formação de três anos no CIFOM La Chaux-de-Fonds, em técnica de construção relojoeira e micro-mecânica (2012–2015), o que lhe permitiu consolidar as suas competências ao mais alto nível. Desde então, construiu uma sólida carreira em algumas das mais prestigiadas manufacturas relojoeiras do mundo. Trabalhou na Parmigiani Fleurier como relojoeiro de serviço (Horloger SC), passou pela Greubel Forsey, onde se dedicou a complicações, e integrou a equipa da Daniel Roth precisamente na altura em que a marca foi adquirida pela Bvlgari. Seguiu-se o departamento de complicações da Bvlgari em Neuchâtel, onde realizou reparações especializadas, e, por fim, trabalhou na Jaeger-LeCoultre, em Le Sentier, no serviço pós-venda (SAV).
Durante este período profissional, conciliou a actividade relojoeira com um exigente percurso académico: estudava três horas por noite para completar um curso superior na área da construção micromecânica, com especialização em relojoaria. Em 2018, confiante no seu percurso e no futuro que ambicionava, Dann decidiu tornar-se independente. Pediu um empréstimo para adquirir um torno de precisão, Torno de alta precisão Ed. Jaccard & S.A. – La Chaux-de-Fonds e uma pointeuse Hauser 2A3 que se move manualmente com uma precisão de 1/1000 de milímetro, uma máquina essencial para marcar com exactidão o ponto onde será realizado um furo.
Foi assim que nasceu o seu atelier em Yverdon-les-Bains, no cantão de Vaud, na parte francófona da Suíça. Desde então, o espaço cresceu em equipamentos e ferramentas, ao mesmo tempo que Dann aprofundava a sua mestria técnica. Para financiar a construção do seu primeiro relógio, trabalhou paralelamente em restauro de peças para marcas e coleccionadores particulares.
Em Abril de 2025, apresentou finalmente a sua primeira criação autoral na exposição Masters of Horology, em Genebra.
O primeiro português na Académie Horlogère des Créateurs Indépendants (AHCI)
É sabido que Portugal tem excelentes relojoeiros reparadores e é sabido que nas fábricas de relojoaria na suíça uma parte significativa dos funcionários são portugueses. No mundo da relojoaria independente, contudo, até ao momento não tinha surgido nenhum português. Dann Phimphrachanh é então o primeiro relojoeiro independente Português. Na suíça existe uma entidade responsável por promover e apoiar estes relojoeiros, a Académie Horlogère des Créateurs Indépendants (AHCI). Fundada em 1985 por Svend Andersen e Vincent Calabrese, tem como missão preservar e promover a arte da relojoaria independente. É uma associação que reúne alguns dos mais talentosos e visionários mestres relojoeiros do mundo. A AHCI nasceu da necessidade de dar voz e visibilidade aos criadores independentes — artesãos que, fora dos grandes grupos industriais, continuam a praticar uma relojoaria de autor, muitas vezes solitária, mas profundamente inovadora. A missão da AHCI é simples e nobre: preservar, promover e apoiar a relojoaria artesanal e criativa, por forma a oferecer uma plataforma internacional onde os mestres independentes possam expor o seu trabalho, partilhar conhecimentos e inspirar novas gerações. Muitos dos nomes mais respeitados da relojoaria contemporânea — como Philippe Dufour, Kari Voutilainen, Vianney Halter ou Felix Baumgartner (Urwerk) — passaram ou continuam ligados à AHCI, sempre dispostos a transformar a associação num verdadeiro farol da excelência mecânica. Num mundo dominado pela produção em massa, a AHCI representa a autenticidade, a liberdade criativa e a tradição viva, sempre com o criador no centro da arte relojoeira.
A Académie Horlogère des Créateurs Indépendants (AHCI) estabelece critérios rigorosos para a admissão de novos membros, o que reflecte o seu compromisso com a excelência e a independência na relojoaria.
Os principais requisitos são os seguintes:
Competência Técnica e Criativa: O candidato deve demonstrar habilidades excepcionais em relojoaria, desenvolver e produzir as suas próprias criações de forma independente.
Apoio de Membros Atuais: É necessário obter o apadrinhamento de pelo menos dois membros activos da AHCI, que avaliam e reconhecem o talento e a originalidade do candidato.
Participação em Exposições: O candidato deve apresentar as suas peças em pelo menos três exposições públicas, e proporcionar uma plataforma para demonstrar o seu trabalho ao público e à comunidade relojoeira.
Período de Candidatura: A fase de candidatura tem uma duração mínima de dois anos, durante os quais o candidato é avaliado quanto à sua competência, criatividade e compromisso com os valores da AHCI.
Aprovação Unânime: A admissão final requer a aprovação unânime da assembleia geral da AHCI, com a certeza de que todos os membros existentes concordam com a inclusão do novo membro.
Estes critérios garantem que apenas relojoeiros verdadeiramente independentes e talentosos sejam admitidos, por forma a preservar a missão da AHCI de promover a inovação e a arte na relojoaria.
A entrada de Dann Phimphrachanh para a Académie Horlogère des Créateurs Indépendants é um dos maiores acontecimentos da sua vida profissional, pois permite-lhe apresentar o seu relógio a um público muito alargado no Ice Bergues, o local onde decorre a exposição Masters of Horology organizado pela Académie Horlogère des Créateurs Indépendants. Esta será a primeira de três exposições na qual deve apresentar o seu relógio. De acordo com as regras, todos os candidatos devem ter dois padrinhos, os de Dann são Raul Pages e Bernhard Lederer, dois excelentes relojoeiros.
Raul Pages Bernhard Lederer
A entrada para esta associação funciona também como um enorme reconhecimento e legitimação do seu trabalho pelos maiores relojoeiros a nível mundial.
Masters of Horology
A Masters of Horology é uma exposição anual organizada pela Académie Horlogère des Créateurs Indépendants (AHCI), que reúne e destaca o trabalho excepcional de relojoeiros independentes de renome mundial. Neste momento decorre a segunda edição da exposição que oferece uma oportunidade única para os entusiastas da alta relojoaria interagirem diretamente com os mestres artesãos e apreciarem as suas criações inovadoras.
A edição de 2025 da Masters of Horology decorreu de 31 de março a 5 de abril, e coincidiu com o 40.º aniversário da AHCI. O evento conta com a participação de 26 membros distintos da AHCI, e novos candidatos que apresentaram as suas magníficas peças. A Masters of Horology não só celebra a mestria artesanal, mas também reforça a importância da inovação e criatividade no mundo da relojoaria independente.
Second Vive - O relógio 1 de Dann Phimphrachanh
O nome escolhido foi Second Vive. Os segundos mortos são uma complicação dos relógios mecânicos que permitem que o ponteiro tenha um movimento descontínuo em vez de contínuo. Isso permite saber as diferenças exactas entre os segundos. Existem vários nomes para esta complicação.
A construçao do Second Vive teve início em 2018. Dann esforçou-se para que o relógio tivesse uma componente de construção manual o mais alta possível. Vamos conhecer todo o processo de construção manual do seu relógio.
A imagem que se segue mostra a construção de um chaton de rubi, uma pequena bucha ou anel , onde é encaixado um rubi que serve de apoio ao pivô de um eixo.

Na foto seguinte é possível ver os Chatons já construídos com os rubis cravados e encaixados nas pontes do relógio.

Na imagem em baixo, é possível observar um pivô em processo de fabrico. Trata-se de um veio de dimensões extremamente reduzidas, cuja extremidade entra em contacto com um rubi. Este pivô localiza-se nas extremidades dos eixos que atravessam as rodas dentadas.
As rodas dentadas são montadas entre a platina — uma placa metálica que constitui a base da construção do relógio — e as pontes, que são várias placas metálicas sobrepostas à platina. Tanto a platina como as pontes possuem furos nos quais são inseridos os rubis. Nos relógios de qualidade superior, esses rubis são cravados em Chatons, como os da imagem acima, que são depois ajustados com precisão nos referidos furos. Com a quantidade certa de óleo esta arquitectura de construção permite reduzir ao máximo possível o atrito, o que resulta num menor desgaste dos pivôs, num maior aproveitamento de energia, tal como num funcionamento geral mais eficaz do próprio relógio.

Na seguinte imagem é possível ver o pivô encaixado no rubi, cravado numa ponte.

Como vimos, a platina é uma placa metálica na base do relógio, as imagens que se seguem mostram a construção de uma platina com um torno de precisão Schaublin 70.
Após a criação da forma básica da platina é necessário prepará-la para receber as restantes peças. As imagens que se seguem mostram o processo de furação da platina. Os furos permitem receber rubis, pinos de fixação e parafusos.
Os pinos de fixação permitem fixar as pontes do relógio na platina. Para além deste tipo de fixação as pontes também são aparafusadas. Estes pinos foram previamente temperados, ou seja aquecidos a altas temperaturas e arrefecidos bruscamente. Este processo permite o seu endurecimento.
A imagem seguinte mostra as pontes do relógio, já com alguns furos e sem acabamento. As rodas dentadas ficam entre estas pontes e a platina.

Nesta fase, Dann ponderou esqueletizar o movimento — isto é, remover o material interior das pontes, e deixar apenas o seu contorno, de modo a permitir a observação das partes móveis do relógio em funcionamento.
No seguinte vídeo é possível acompanhar o processo de furaçao das pontes e da platina. Com a técnica utilizada por Dann as pontes e a platina são furadas em simultâneo, o que permite um alinhamento perfeito entre ambas.
Acabamentos é o nome que se dá ao processo de embelezar as diferentes peças ou mesmo a caixa de um relógio. Uma das técnicas chama-se Anglage, trata-se uma operação manual ou mecânica que consiste em romper o ângulo que forma a aresta entre duas superfícies. Na maioria dos casos, as operações de anglage são realizadas entre a superfície superior de um componente e o seu flanco, com um objectivo essencialmente estético. O chanfro pode ser plano ou arredondado convexo. Do ponto de vista decorativo, o chanfro polido reflecte a luz em diferentes prismas e realça, por contraste, as superfícies.
A peça que se apresenta a seguir pertence ao tambor do relógio. O tambor é o componente que aloja a corda — uma mola em espiral que se enrola ao dar corda ao relógio, e se desenrola de forma controlada e descontínua. Esta é a fonte de energia de um relógio mecânico.
De seguida vamos ver a construção de uma roda dentada. O processo envolve grande perícria e alguns cálulos para decidir sobre o número de dentes e a sua forma, entre muitos outros aspectos. Este trabalho é feito num torno de relojoeiro a partir de um veio de latão. No final é feito um banho galvânico. O banho galvânico é um processo electroquímico utilizado para revestir uma peça metálica com uma fina camada de outro metal. A peça a revestir é submersa numa solução condutora (electrólito) que contém sais do metal a depositar. Ao aplicar-se uma corrente eléctrica, os iões metálicos da solução aderem à superfície da peça, formando um revestimento uniforme. Este processo é utilizado para proteger contra a corrosão, melhorar a aparência ou conferir propriedades específicas, como dureza ou condutividade.
A seguinte imagem mostra uma roda de balanço ainda em fase de construção. Esta é a roda que vai receber a mola espiral e que, em conjunto com outras peças, permite regular o funcionamento do relógio. Na imagem à esquerda é possível ver uma peça em ouro que devido à sua densidade é usada como peso para calibrar a roda de balanço. A calibração é feita através da rotação desta peça, que é uma de quatro. Ao rodar estes pesos é possível garantir o movimento homogéneo da roda de balanço.
A peça que se apresenta a seguir é uma âncora, um dos elementos do sistema de escape do relógio. O escape tem a função de transformar a energia contínua libertada pela corda em impulsos periódicos, regulando o movimento do relógio. A âncora, visível na quarta imagem em baixo à direita, é responsável por travar e destravar alternadamente a roda de escape, permitindo uma libertação controlada da energia. Esta conversão do movimento contínuo em impulsos regulares torna possível a contagem do tempo com precisão.
O vídeo que se segue mostra o processo inicial de construção do mostrador. Podemos observar a marcação, o corte da placa metálica no torno, a têmpera e a esmaltagem.
Contudo, não foi este o caminho seguido por Dann, optou por um mostrador em guilhoché, azulado através de calor, o que permite manter o aspecto pelo menos por várias décadas.
As imagens que se seguem mostram o processo de construção da escala dos segundos
A caixa do relógio é a parte que entra mais em contacto com o utilizador e deve ser feita com bastantes cuidados técnicos e estéticos.

O mostrador do Seconde Vive apresenta um nível técnico bastante elevado — todas as suas partes foram cuidadosamente pensadas e meticulosamente executadas. Dann optou por inscrever o seu apelido completo no mostrador, em vez de recorrer a uma abreviatura ou a um nome mais fácil de pronunciar, o que à primeira vista pode parecer uma escolha arriscada. No entanto, convém lembrar que todos aprendemos a pronunciar Arnold Schwarzenegger. Um nome com essa singularidade pode exigir uma curva de aprendizagem mais longa, mas o que verdadeiramente importa é que é único no universo da relojoaria.

Embora Dann Phimphrachanh considere que não criou nenhuma nova complicação, a verdade é que é bem possivel considerar-se que criou. A forma de apresentação dos segundos mortos pode não ser considerada a complicação segundos mortos pois a energia não é retirada da mesma forma. Para a apresentação dos seus segundos Dann construiu um novo sistema de escape, que recorre a um triângulo reuleaux de rubi. O movimento é retirado directamente da roda dos segundos como acontece com os cronógrafos.

O resultado final é uma verdadeira homenagem ao tempo — um relógio concebido para se revelar da forma mais sublime possível. O utilizador pode observar todo o processo de dar corda e de acerto da hora, bem como apreciar os acabamentos absolutamente perfeitos. Acima de tudo, terá no pulso uma peça que resulta quase exclusivamente do trabalho manual de um relojoeiro apaixonado pelo tempo.
O seu lema é vivre le temps avec passion — viver o tempo com paixão.

Adorei, espectacular.
Bom trabalho.
Trabalho espectacular! Isso sim é o que reaviva a chama desta paixão. E obrigado Nuno pela excelente reportagem. Muitos parabéns.
Até dá gosto!
Muito bom Nuno, parabéns 👏
Enorme!